O conto policial de Olivares

Em um artigo publicado na revista Abril no início dos anos 70, relatou um conto policial sobre um investigador chamado Olivares, que solucionou um caso de homicídio na Vila Clara de um jovem chamado Obedes.

Abaixo, segue o texto:

Dois tiros na escuridão da rua cheia de casebres sujos e mal alinhados. Obedes soltou um gemido, parou de correr e começou a cambalear. Alguns metros adiante caiu agonizante ao lado de um poste. Logo depois, seu corpo foi iluminado pelos faróis de uma perua Kombi. Um homem desceu do carro para socorrê-lo. A caminho do hospital, porém, a bala calibre 38 encravada nas costas acabou de matar Obedes Cortegoso, um rapaz de 17 anos.

Nos dias que se seguiram, os moradores da pequena Vila Clara, na periferia de São Paulo, acompanharam traumatizados as providências policiais. A pergunta era uma só: “Que espécie de homem mataria um garoto pelas costas?”

Cinco meses depois, havia uma única e inútil resposta, dada pelo delegado titular do 35º distrito policial, encarregado das investigações, num relatório enviado ao juiz: “Obedes Cortegoso foi vítima de repelentes marginais, tipos que degradam a espécie humana”. E como nada fora possível esclarecer, “contristado e estarrecido, que a justiça divina punisse o autor do crime”.

Para o azar do assassino, Olivares entra em ação – Sentado displicentemente em frente á sua mesa, na Delegacia de Homicídios, o detetive Luís Olivares tinha o olhar perdido no espaço. Seu polegar direito pressionava a maçã do rosto enquanto o indicador batia compassadamente o queixo.
Gesto inevitável quando as dúvidas de um caso o intrigavam. E nada o intrigava mais naquele momento do que as nebulosas peças do inquérito que tinha nas mãos, sobre o assassinato do jovem Obedes na noite de 5 de janeiro de 1969. Nada combinava, especialmente no boletim de ocorrências. Olivares já antevia uma dura missão pela frente – se bem que isso não era novidade. Desde 1967, as delegacias especializadas do Departamento Estadual de Investigações Criminais, como era o caso da Homicídios, hoje Divisão de crimes contra a Pessoa, encarregam-se dos casos não impossíveis de serem solucionados pelos Distritos. Olivares e seus colegas da equipe B, por definição, deveriam estar preparados para resolvê-los. Olivares, principalmente.

Poder-se dizer que seu treinamento começou na calçada em frente á oficina gráfica onde trabalhava, no bairro do Brás. Ele devia ter uns 13 ou 14 anos. Nas horas de folga sentava-se no chão rodeado por um grupo de amiguinhos e lia em voz alta páginas inteiras de X-9, uma antiga revista de contos policias. Mas quanto para seus pequenos colegas o entretenimento terminava no fim da leitura, para Olivares continuava o dia inteiro e ás vezes a noite adentro.

Rememorando as pistas fornecidas pelos autores ao longo das novelas, procurava ligá-las, equacioná-las e antecipar a solução final. Era um treino diário, obsessivo. Sonhava em ser um detetive capaz de resolver os casos mais intricados no puro raciocínio. Mais do que um desejo, era uma convicção.

Quando entrou para a polícia, em 1960, aos 30 anos, prometeu a si mesmo fidelidade a um princípio: “O raciocínio é a única arma que um policial deve usar no cumprimento de seu dever”.
Manteve a promessa e pretendia mantê-la também no caso Obedes.

Ao afastar o polegar do rosto, e acomodado melhor na cadeira, o corpo atlético (1,72m de altura, 72 quilos), Olivares já havia concluído: “Este boletim é falso”.
Sugeriu ao seu chefe, delegado Sérgio Chaves, a devolução do inquérito ao 35º Distrito para maiores esclarecimentos, enquanto ele desenvolvia investigações paralelas e por conta própria.

Imagem de Olivares

E juntos resolveram dar uma busca nos arquivos da Chefia da Zona Sul, á qual subordinava o 35º. Encontrou o que queria: o verdadeiro boletim, com nomes de testemunhas e um dado esclarecedor – Obedes fora morto por um policial.

A descoberta não mudou a decisão de Olivares de continuar suas investigações até o fim. Quando resolveu trocar seu salário de gráfica de 21000 cruzeiros antigos (cerca de 2 salários mínimos da época) pelos 11500 oferecidos pela polícia, enfrentando toda oposição de sua mulher e pais, Olivares fez uma outra promessa a si mesmo: “Hei de descobrir todo aquele que fizer mal a qualquer membro da família paulista”.
É verdade que no seu começo seu entusiasmo arrefeceu, quando descobriu como era difícil manter a promessa. Quase desistiu de sua nova profissão um mês depois. Mas as palavras do delegado Coriolano Cobra o incentivaram: “Olivares, é de gente como você que a polícia está precisando”. Sofreu outra decepção também ao ser enviado para servir na Delegacia de Roubos e Furtos, de Santos. A rotina de descobrir pequenos roubos não satisfazia seu sonho de deslindar grandes casos.
Mas durante quatro anos que passou em departamentos sem as emocionantes movimentações das novelas policiais, Olivares nunca abandonou a leitura de suas revistas preferidas. Exercitava continuamente seu raciocínio com casos fictícios e reais. Em 1964, quando finalmente foi transferido para Delegacia de Homicídios, desiludiu-se mais uma vez: No seu primeiro plantão de 24 horas, destacaram-no para atender telefonemas e anotar os dados das ocorrências. Mesmo nessas horas, Olivares procurava aprender, conversando com colegas mais velhos, ouvindo-os contar seus casos.

O roteiro da morte do menino Obedes

A descoberta de Olivares na Chefia da Zona Sul e uma nova investigação feita junto ás testemunhas, permitiram-lhe estabelecer o roteiro seguido por Obedes até sua morte. Na noite do crime, ele e alguns amigos estavam voltando de um baile em Diadema, cidade vizinha. Desceram do ônibus em Vila Clara, mas antes de ir para casa resolveram comprar uma pizza no bar Dois Irmãos da Avenida Fúlfaro. Foram comê-la na rua, enquanto conversavam. Nisso, dois carros da polícia, um Simca de cor cinza e um Volks azul, pararam diante dos rapazes. Três homens desceram e pediram-lhes os documentos.


Todos tinham. De repente, sem qualquer motivo, mandaram os jovens correrem, eles correram, amedrontados. Seguiram-se dois disparos. Um atingiu Obedes. Os três homens voltaram para o carro e um deles gritou o nome Áureo. A principal testemunha, além dos sete companheiros de Obedes, foi Hélio Matias, dono do bar. Justamente naquele momento, ele estava na rua, escondendo-se de alguns guardas-civis que haviam chegado para levar embora, a pedido de vizinhos incomodados, sua barulhenta vitrola.

No entanto, 29 dias após o crime, Matias fora convocado pelo 35ºDP a prestar novos esclarecimentos. E dissera que o eco “atrapalhou a compreensão do nome do agressor”.
Ele ouvirá Lauro e não Áureo. Olivares preferiu a primeira versão.
Pelos depoimentos das testemunhas, os ocupantes dos dois carros seriam policiais Áureo Oliveira Bernardo, Antonio Tavares Teves e um colaborador apelidado de Franja.

As investigações e as inquirições das testemunhas prosseguiram durante todo o ano de 1970. No dia 13 de janeiro de 1971, finalmente, Áureo admitiu sua presença no local do crime, mas acrescentou um nome á lista anterior e apontou como sendo o autor dos disparos: Ranulfo, porém, não podia se defender: morrera seis meses antes num desastre de automóvel. Cinco meses depois, o delegado Mário Camargo Azevedo concluía: “O invesgiador Ranulfo Dias Filho, visando amedrontar os rapazes, teria desfechado dois tiros de intimidação para o alto, havendo, provavelmente, um dos projéteis atingindo casualmente a vítima”.

Como a rua não era iluminada, acrescentava o delegado, os investigadores não perceberam o acidente e foram embora.

Mas investigações de Olivares o levaram a apontar outro homem como culpado: Áureo. Resolveu procurá-lo em sua casa, onde acabou obtendo uma confissão em forma de ameaça: “Olha, Olivares, veja lá o que vai fazer”.

E, em setembro de 1971, um promotor da 2ª vara do Júri requeria o arquivamento do processo.

Olivares fora derrotado. Mas ainda mantinha aquele entusiasmo que o acompanhava desde o dia em que resolveu o seu primeiro grande caso, o da mulher esquartejada. A história começou pouco depois de sua transferência para a Delegacia de Homicídios, durante aqueles maçantes plantões telefônicos. O detetive Emílio Mata, chefe da equipe A, convidou-o a acompanhar o pessoal que ia atender ao sinistro caso no subúrbio de Arthur Alvim. Emocionado, Olivares quase não poderia responder. Principalmente porque nunca havia visto um cadáver, muito menos esquartejado. Sentiu certo medo, resistiria? No local, Olivares portou-se bem para um principiante e ficou ansioso por mostrar seus conhecimentos adquiridos não só na Escola de Polícia, como nas leituras das aventuras de Sherlock Holmes. Quis levar as fezes encontradas ao lado do corpo (provavelmente do assassino) para analisar. Havia lido em algum lugar que exame comparativo de parasitas sempre ajuda a elucidar um crime. Mas foi desencorajado pelo chefe: “Deixa disso, Olivares, quer empestear nosso carro?”.

A falta de pistas logo colocou o assassinato no rol dos casos insolúveis. Olivares resolveu fazer seu grande teste: pediu autorização para investigar o caso. Sua única e frágil pista: o pedaço de linha grossa que amarrava os pés da vítima. Durante sete meses percorreu os bares e lojas de Arthur Alvim, fingiu-se de recenseador, fez pesquisas para o Ibope, tudo para conversar com as donas de casa e obter alguma informação valiosa. Conseguiu descobrir o fabricante da linha. Depois, um alfaiate que a utilizava. Apareceu também uma mulher, que ouviria um grito na noite do crime. Outras pistas levaram-no de volta a João de Deus, o alfaiate, que acabou confessando ser o assassino.

A vítima, embriagada, procurara refúgio em sua casa, dizendo-se perseguida por um homem. Fora ela quem gritará, ao ser abordada pelo desconhecido. João de Deus deu-lhe proteção, mas, por sua vez, tentou atacá-la. Na hora, alguém bateu á porta. Era sua vizinha, que toda madrugada vinha chamá-lo para irem juntos ao trabalho. Assustado, João de Deus tapou a boca e o nariz da vítima, matando-a por asfixia. Foi trabalhar e ao voltar surgiu o problema de como transportar o corpo até o terreno baldio. Cortou-o então em três pedaços e amarrou os pés com a linha.

Na iminência da morte, a revelação

Além do desfecho inesperado do caso Obedes, havia um outro problema com Olivares, desde os fins de 1972, uma persistente dor de cabeça o atormentava. E graças a essa doença o caso foi novamente movimentado.

Após uma série de exames, os médicos constataram a existência de um tumor no cérebro de Olivares, resolveram tentar uma perigosa operação, mais do que um tumor, porém, uma preocupação martelava a cabeça do detetive: a promessa feita ao pai de Obedes, quando começou a investigação: “Fique sossegado. Vou encontrar o assassino do seu filho”, disse ao velho José, um humilde vendedor de pipocas. Temendo não sobreviver a operação e disposto a cumprir essa promessa, Olivares chamou o juiz José Waldeci Lucena e o promotor Djalma Lúcio Gabriel Barreto e contou toda a história. No dia 5 de junho de 1973, o juiz Manoel Abrantes Veiga de Carvalho e o promotor Alberto Marino Júnior, mais os advogados de Áureo, nomeados pelo Ministério Público, compareceram ao quarto 1217 do hospital. Nessa audiência, que durou três horas, Olivares repetiu a acusação, enriquecendo-a com os detalhes por ele apurados. No mesmo dia, o juiz decretou a prisão preventiva de Áureo Oliveira Bernades e Antônio Tavares Teves.

Cumprindo seu dever, Olivares submeteu-se tranquilamente a operação. Ele continua vivo e com esperança de atacar outros casos considerados de solução difícil e que ficaram pendentes com sua doença.

Agora, porém, Olivares conta com ajuda de outros cérebros, tão ávidos de mistérios quanto o seu: sua mulher, seus três filhos e seus sogros. No modesto apartamento de dois quartos, no bairro do Ipiranga, hoje todos são seus fãs.